EU, E O ELEMENTO ESTRANHO
Valdir Rangel
03-02-2001
Há sempre algo
característico que marca uma pessoa, às vezes é a fala, é o sorriso, é o jeito
sisudo, ou é o jeito gaiato, de um modo ou de outro todos nós temos uma
identidade mais forte que serve como a nossa marca registrada, o nosso elemento
estranho, tinha varias características, falava alto como se estivesse brigando,
gesticulava bastante, e sempre estava de chapéu, embora a sua característica
mais marcante fosse falar alto, ele tinha nos gestos o português correto, que
faltava nas suas palavras, embora suas estórias fossem marcadas por palavras
simples e fortes, que me prendiam a atenção naquelas noites quase escuras, onde
as pessoas ainda se reuniam nas calçadas defronte das suas casas, talvez aquilo
nem fosse uma reunião era na realidade um costume que passou a ser uma
obrigação cotidiana, e ali ele estava todas as noites, um cigarro ou cachimbo
de cheiro forte, e como vou dizer mesmo, de um fedor quase insuportável.
Naquela época não havia lei contra o fumante, e ele era um homem bastante
interessante, sem a sua presença as rodas de bate-papo não tinham graça alguma,
ficavam monótonas, e assim eu passei a admirá-lo, e entre uma brincadeira e
outra eu parava ali para descansar e ficava me deliciando com as estórias dele,
algumas vezes tínhamos as nossas orelhas puxadas ora por nossa mãe ora por
nosso pai. E assim toda a noite no terreiro de minha casa, se formava um grupo
de vizinhos para a tradicional conversa após o café ou como queiram o jantar,
seu Chico Américo, sempre marcava presença, ele tinha nome de escritor mais não
sabia fazer nem o nome, como ele próprio dizia na sua linguagem matuta, a sua
escola foi sempre o roçado, e a sua caneta era a enxada, que arrastava cobra
para os pés, a sua família era bastante numerosa, até o tempo em que fomos
vizinhos ele e a sua madame já tinham nove filhos, outro dia eu fiquei sabendo
por um filho seu, que o total chegara a treze filhos, a sua esposa era mulher
do lar, trabalhava que nem uma máquina, eles moravam numa casinha de palha com
um enorme quintal, onde eu vez em quando brincava com a meninada, o fato é que
seu Chico Américo, ou Chico galego como era mais conhecido, toda a noite
deliciava os meus ouvidos com as suas estórias engraçadas, eu bolava de rir, o
homem arregalava os olhos, gesticulava feito um avião fazendo piruetas, e
falava com bastante altura, fosse na época atual seria com certeza punido pela
sudema, lembro-me bem que uma de suas estórias ele falava que virá o diabo, o
dito cujo era um sujeito alto loiro de olhos azuis e cabelos cacheados, e que
na realidade ele não era ruim, ou melhor se fazia de bom para ludibriar as
pessoas, e ele na conversa que teve com o referido recebeu muitas promessas,
ofertas de dinheiro muita fartura na
mesa etc. mas Chico galego, que nada tinha de otário, disse que aceitava aquela
vida boa que o capeta lhe estava oferecendo, com uma única condição, que o
mesmo lhe ajudasse a terminar o plantio de uma mandioca que estava fazendo,
dito isso o diabo fugiu dali, e seu Chico ficou pensando e falando sozinho, foi
ai que ele descobriu que o diabo é preguiçoso.
Outra de suas estórias,
conta que numa caçada se esqueceu de levar cigarro e fumo, e quando chegaram ao
meio da mata, os seus cachorros, acuaram um peba numa moita, e naquela agitação
ele notava que os seus cachorros estavam perdendo a parada, pois a comadre
fulozinha estava dando a maior piza nos
animais, e o jeito foi ele e os cachorros saírem dali correndo, e atrás deles
ouviam uma voz gritando Chico me dê fumo, Chico me dê fumo, de tanto medo, ele
chegou em casa tão ligeiro que parecia ter vindo de carro, a sua carreira foi
tão grande que os pés batiam na sua bunda. Outra de suas estórias, ele contava
que pegou um sujeito roubando verdura no seu roçado, ele deu um murro tão
danado no cara, que o sujeito pegou uma doença por nome de pião, ficava o tempo
todinho rodando a cabeça, sem falar no outro ladrão que ele deu um cascudo na
cabeça do bicho, que o cabra enterrou-se mais ou menos uns cinco metros chão
adentro, ai ele aproveitou o buraco e fez uma cacimba. Até hoje essa cacimba
ficou conhecida como a cacimba do cascudo.
Falar de seu Chico
galego é infinito, o inhame com doze metros, o sapo que falava o gato que latia
etc.etc. a Verdade é que o tempo passou, aquele bate papo noturno acabou-se, as
pessoas aprenderam outros costumes, os meninos como eu fui um dia, não
aprenderam a arte de ouvir estórias, o divertimento preferido é a TV, ou o
vídeo game, a figura do seu Chico galego, desapareceu, hoje só existe, os
humoristas profissionais, ninguém faz mais ninguém rir de graça, o mundo não
admite mais pessoas felizes, é verdade que ainda existe algum chicos galegos,
mais a verdade, é que não há mais encontros nas calçadas os vizinhos esqueceram
o seu papel, a violência de hoje não dá espaço para aquele bate papo saudável,
só nos resta recorrer ao arquivo da recordação e tentar ser feliz mais uma
vez.
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